quarta-feira, agosto 04, 2010

Você conhece Mangarito???


Iguaria tropical
O mangarito quase desapareceu, para tornar-se, tempos depois, uma preciosidade culinária ao lado de outras raízes do Brasil 
Texto Janice Kiss
Fotos Fernanda Bernardino


NOBREZA caipira com nhoque de mangaritos e molho de moelas
Foi numa fazenda em Penápolis, interior de São Paulo, já pertinho do estado de Mato Grosso do Sul, que Mara Salles aprendeu com a mãe, dona Dêga, os primeiros rudimentos da culinária. Assim como as demais crianças da região, ela passou a colher flores de abóbora para a sopa, a secar café no terreiro de chão socado, a bater a nata do leite para fazer manteiga, a empregar banha de porco na conservação e preparo de pratos - antigamente, a banha de porco era usada para quase tudo. O tempo passou e Mara guardou tais conhecimentos na memória. Há 18 anos, porém, ao abrir o restaurante Tordesilhas, ao lado da mãe, ela os resgatou e desde então vem ganhando prêmios - sua cozinha é uma das que melhor representam a identidade da gastronomia brasileira. No restaurante, na capital paulista, freqüentam o tucupi e o jambu, da Amazônia; o camarão seco do Recôncavo Baiano, o queijo coalho fresco despachado do agreste pernambucano, o azeite de castanha-do-pará feito no Mato Grosso e as polpas frescas de frutos amazonenses recém-chegados. Tudo com cara de prato de chef, porém sem perder o tempero da comida de casa.De uns tempos para cá, Mara cismou com as raízes, tubérculos e rizomas que estão desaparecendo das roças por falta de mercado. "Hoje, os ingredientes são todos padronizados." Para valorizá-los, organizou o festival Raízes do Brasil. Teve batata-doce roxa ( daquelas que têm essa cor na massa, e não apenas na casca), taro, mandioca com açafrão-da-terra, araruta e mangaritos, tratados pelos chefs como a trufa brasileira, em referência ao cogumelo que nasce sob a terra, considerado uma iguaria na alta gastronomia européia. A volta desse rizoma, com pompa e tudo, só foi possível porque Mara encontrou João Lino Vieira, um dos únicos produtores do Brasil. É no município de Embu-Guaçu, no entorno de São Paulo, que seu João teima em plantar mangarito, cujo formato lembra uma batata cheia de dedinhos, desde 1985. "Tem um sabor precioso, que lembra castanha portuguesa e é inesquecível", comenta.
Mara Salles e João Lino durante prosa sobre alimentos rejeitados
Afora a dedicação do agricultor, o rizoma sempre ficou restrito aos plantios domésticos. " Talvez por ser chatinho de limpar - a pele só solta com a pressão dos dedos, depois de cozido -, acabou ficando de lado", palpita Mara. Para ela, é uma pena sua pouca oferta, pois trata-se de um ingrediente valioso para a sofisticada culinária. Mas agora que João Lino foi descoberto, seu plantio de um hectare, que rende uma safra de dois mil quilos, já tem destino traçado. Ele adverte que o rizoma, plantado entre setembro e outubro, só é colhido uma única vez no ano e no mês de maio. "O bom é trabalhar com produto fresco. Mas guardo a produção por mais uns meses para atender fregueses tardios", conta.
Mara Salles espera que o entusiasmo do produtor contagie os agricultores que se dispõem a cultivar diferentes raízes, como a araruta, que entrou na lista de extinção da FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, no rol das culturas negligenciadas. Por conta do sumiço, é muito comum sua fécula ser confundida com a da mandioca. "Fazia uns 30 anos que não via o polvilho de araruta até ganhá-lo meses atrás", conta. A chef reconhece que está mergulhada em novas pesquisas da cozinha brasileira ("Ainda muito referendada nos fogões à lenha", diz.) voltadas para os pequenos alimentos, feito o mangarito. Talvez seja por isso que os amigos costumam dizer que ela se transformou numa antropóloga da culinária.
Seu João Lino só tem agradecimentos para interesses como os dela e de outros cozinheiros que despertam os olhares para os plantios que sobrevivem às custas de muita teimosia de agricultores como ele. "Já pensei em parar, mas essas buscas recentes me revigoraram", confessa. Ele estava mais acostumado a consumir essas "batatinhas" amassadas e misturadas ao melado. Porém, Mara Salles achou uma outra versão para suas preciosidades: nhoque de mangarito com molho de moelas. Seu João aprovou e relembrou da infância na roça ao se servir de um cremoso arroz-doce de sobremesa. Depois, não deixou de comentar que "um combinado tão perfeito não pode passar em branco pelos leitores da revista Globo Rural".
ESPERA POR DIAS MELHORES


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